segunda-feira, 1 de junho de 2015

Sobre Responsabilidades e um Valente Trabalho com Mercado de Nicho

Por Gabriel Guimarães


Exatamente um mês atrás, comentamos aqui no blog sobre o papel das editoras na formação de novos leitores, abordando muito superficialmente o caso da editora HQM e o cancelamento da linha de revistas mensais do selo norte-americano Valiant. Conforme destacamos na época, a defasagem entre a tiragem da revista e a procura pela mesma nas bancas de jornal e demais pontos de venda ao redor do Brasil foi a causa para essa decisão por parte dos editores, que criticaram nas redes sociais a falta de participação dos leitores que aparentemente enchiam os títulos lançados de elogios, mas que deixavam de contribuir com a compra propriamente dita das revistas. Isso gerou uma discussão considerável em sites como o Ponto Zero e o Terra Zero, que fizeram questão de observar a situação dos dois pontos de vista do caso. A fim de observar de forma adequada o panorama do mercado editorial de histórias em quadrinhos no Brasil, é importante adentrar neste caso em particular, esclarecendo algumas dúvidas que podem ter surgido em nossa última matéria e aprofundando um pouco mais nas considerações do trabalho de responsabilidade das editoras para o fomento do mercado leitor brasileiro.

Anunciado em abril de 2013, o lançamento da HQM pretendia preencher uma lacuna no mercado de revistas de super-heróis com projeções realistas no mundo globalizado no qual nos encontramos hoje. Enquanto muitos leitores reclamavam da falta de veracidade dos personagens das histórias do gênero heroico dos quadrinhos, a editora norte-americana Valiant, fundada no ano de 1989 por dois ex-profissionais da Marvel, Jim Shooter e Bob Layton, procurou dar nova perspectiva à existência de seres com capacidades extra-ordinárias em seus próprios títulos, reiniciados em 2012, dentre os quais se destacavam o carro-chefe "X-O Manowar", "Harbinger", "Archer &Armstrong" e "Bloodshot". Contratando autores com bagagem na indústria de quadrinhos, como Robert Venditti, Cary Nord, Duane Swierczynski, Matt Kindt, Clayton Henry, entre outros, a editora rapidamente se tornou relevante nas vendas das comic shops norte-americanas, como já ocorrera na primeira investida da editora na década de 1990.

Uma das edições dos anos 1990 da editora
O auge prévio da editora foi entre os anos de 1992 e 1993, quando sua parcela no mercado norte-americano rivalizava com as duas gigantes Marvel e DC, quase igualando seus números de vendas aos da editora de Superman, Batman e companhia. As histórias dos personagens atiçavam os jovens leitores das revistas com contos mirabolantes e ação extrapolada, marcas comuns da época da bolha de especulação no mercado editorial de quadrinhos, quando empresas, como a Image, escalaram de forma meteórica até o topo da indústria, para levar todo o mercado a uma perigosa queda, que quase condenou o gênero dos super-heróis, predominante no mainstream da época. Os investidores na Valiant venderam, então, suas ações para uma empresa de videogames, a Acclaim, que tentou ainda relançar o material em 1996 e que, aos trancos e barrancos, continuou em produção até 2002. Dois anos depois, a empresa declarou falência e a propriedade intelectual dos personagens da editora ficaram em um limbo judicial por quase meia década, quando os executivos Dinesh Shamdasani e Jason Khotari, dois fiéis leitores do conteúdo clássico dos títulos "X-O Manowar", enfim, conseguiram reaver a possibilidade de dar uma nova vida para os personagens que marcaram suas infâncias.

Pôster da parceria da editora Valiant com o
programa BiblioBoard
Após algumas tratativas nos bastidores e adquirir um pouco mais de experiência na nona arte como produto, a dupla japonesa conseguiu chegar a um acordo com vários profissionais da indústria que não estavam exatamente sob a luz dos holofotes nas editoras onde estavam e, assim, em 2012, promoveram uma nova fase dos personagens da Valiant nos Estados Unidos. Os títulos novamente cativaram o interesse dos leitores, com tramas atuais e uma pegada mais realista, apesar das sinopses serem as mesmas da época mirabolante do primeiro grande sucesso da editora. A fim de engajar o mercado em seus lançamentos, a editora ainda tem marcado presença de forma constante em uma série de convenções da arte sequencial ao redor do país, como a Florida Supercon e a Phoenix Comicon, e vem procurando alcançar relevância nas novas mídias digitais, como, por exemplo, pela parceria com o programa BiblioBoard, que vai disponibilizar o catálogo das revistas Valiant nas bibliotecas norte-americanas.

Tabela dos eventos e convenções nos quais a Valiant participará
em 2015 nos Estados Unidos
Esse contexto do trabalho realizado com esse conteúdo no território americano apresenta, de antemão, algumas questões pertinentes na análise do processo ocorrido na publicação desse conteúdo no Brasil. Algo que tange desde as responsabilidades da editora quanto das mídias cabíveis de cobrir esses lançamentos. Em primeiro lugar, é necessário destacar que a natureza do mercado editorial brasileiro não possui o poderio financeiro e nem a estrutura cultural que os Estados Unidos possui (existem altos e baixos em ambas, não uma valorização de um sobre o outro aqui), então, a partir disso, é necessária uma colaboração bastante íntima entre todas as partes envolvidas para que o processo seja bem sucedido. Editores, jornalistas e, afinal, leitores, precisam estar em sintonia para um funcionamento positivo dessa ferramenta de comunicação.

 As mídias especializadas precisam estar atentas e ativas, o que nem sempre acontece no que diz respeito a todas as publicações de quadrinhos no Brasil, mas é da responsabilidade delas trabalhar com os conteúdos publicados a fim de que o mercado tenha consciência do que lhe é oferecido e como e onde pode consumir esses produtos. Quanto ao selo Valiant, ocorreu, de fato, uma defasagem, se não ausência, desse trabalho em várias frentes. Nós, do Quadrinhos Pra Quem Gosta, nos incluímos, também, nesse mote. Os títulos da HQM estavam em nossa pauta para discussão, porém, uma série de fatores acabaram nos tirando a perspectiva que deveríamos ter tido quanto ao caso em seu momento de construção. Com dificuldades para conseguir novos leitores e equilibrar financeiramente o projeto, a editora acabou passando por um hiato de publicação de quase seis meses durante a tentativa de fomentar o mercado para essa "nova" linha de personagens e, alguns meses atrás, acabou por confirmar o cancelamento dos títulos mensais de "X-O Manowar" e "Universo Valiant".

Há, contudo, que se apontar também que existe uma responsabilidade por parte da editora, no caso, em que, dadas oportunidades para tomar parte em eventos do meio e participar de forma mais ativa nas comic shops parecem não ter sido devidamente aproveitadas pelos profissionais a cargo dela. A mídia especializada, que falhou ao não abordar a publicação do selo Valiant no Brasil, também não foi procurada pelos editores responsáveis para que uma parceria pudesse ser construída em termos de constante feedback sobre o que poderia ser melhorado nos títulos mensais. Em eventos de média e grande porte, o selo HQM só pode ser conferido em estandes de terceiros, responsáveis pela mera venda e não produção daquele conteúdo, como é o caso da Devir e da Livraria da Travessa. Nas grandes mídias, como televisão e jornais impressos, sequer foi ventilada qualquer menção aos títulos da editora, talvez à exceção da revista "Mundo dos Super-Heróis", da editora Europa. Se os profissionais envolvidos não tomarem mais iniciativa no organismo vivo que é a produção cultural no Brasil, não é possível esperar resultados exorbitantes. Parece, enfim, ter faltado a determinação que Shamdasani e Kothari demonstraram ter para com o trabalho no mercado norte-americano, sempre procurando estar presentes e procurando novas parcerias e relevância. A culpa, contudo, não é só da editora, vale mais uma vez ressaltar, porém, existe sim uma parcela de ações possíveis de serem tomadas para remediar o déficit da linha Valiant que não foram realizadas pelos profissionais que a elas poderiam ter recorrido.

Um elemento que nos chama a atenção, para comentar algo específico e não apenas abordar superficialmente o caso, é a publicação todos os meses de capas alternativas dos títulos. O que seria um elemento maravilhoso para os colecionadores acabou por virar uma confusão para os consumidores ocasionais, que constituem a maior parcela de leitores de revistas no Brasil. Pela irregularidade com que as revistas eram lançadas nas bancas, consumidores corriam o risco de comprar mais de uma vez a mesma edição acreditando se tratar de material inédito, o que os desestimularia a continuar acompanhando as histórias. A própria defasagem na chegada dos novos números foi algo que influenciou muito negativamente quem não interagia diretamente com a editora e não sabia em que passo se encontravam os títulos, acreditando, assim, que estes poderiam ter sido cancelados, como ocorrera, por exemplo, com a série "Face Oculta", do italiano Gianfranco Manfredi e do croata Goran Parlov, que foi cancelada após apenas duas edições pela editora Panini, em 2012.

Conforme referimo-nos ao desenhista Orlando Pedroso, a responsabilidade pela formação do público leitor não é exclusivo das editoras, mas algo que todas as partes necessitam de assumir suas respectivas ações necessárias para um trabalho conjunto em prol dessa boa troca entre produtores, editores e leitores. Nós, mais uma vez, assumimos nossa parcela de responsabilidade sobre os erros praticados no caso do selo Valiant, porém, rechaçamos tanto uma crítica extrema aos profissionais do livro como aos leitores e interessados nesses conteúdos. Não adianta buscar bodes-expiatórios para reduzir um problema maior a uma nomenclatura ou atribuir simplesmente a alguns a culpa e dar o caso por encerrado. Como mercado e como participantes ativos nesse processo de formação cultural e expressivo por meio da arte sequencial, é da responsabilidade de todos nós sempre atentar para o que nos é possível melhorar para que as próximas grandes oportunidades não sejam desperdiçadas, mas sim comemoradas e aproveitadas ao máximo.


Agora, para encerrar, a editora HQM trouxe à tona uma discussão extremamente pertinente e que pode ser fator de grande impacto no mercado editorial de revistas em quadrinhos no Brasil. Diante do lamento que muitos dos leitores expressaram diante da notícia do cancelamento dos títulos mensais, o editor Artur Tavares levantou a possibilidade de trabalhar as histórias que ainda estavam abertas para serem encerradas em revistas no mesmo formato e molde dos títulos mensais, mas que seriam vendidos de forma direta das editoras para os leitores, publicando, assim, apenas o montante referente aos pedidos já previamente estabelecidos pelo mercado consumidor. Esse esquema é similar ao realizado nas comic shops norte-americanas, que recebem muitas vezes das editoras exatamente o número contado de edições requisitadas com base nos seus clientes e na potencial procura por aqueles materiais. Isso pode superar uma limitação comum que já é encarada por muitos produtores de conteúdo impresso no nosso país, o monopólio das distribuidoras, conforme o site Judão apontou em matéria que pode ser conferida aqui. Caso essa proposta de Tavares e da HQM surta efeitos positivos, isso pode revolucionar a produção da arte sequencial no país, apresentando toda uma nova estratégia de comércio e veiculação do conteúdo editorial. Resta-nos, então, observar os resultados que essa proposta vai apresentar e, cada um, assumir as responsabilidades por um funcionamento adequado da estrutura do mercado cultural brasileiro.

A quem tiver interesse, o editor Artur Tavares deu uma entrevista sobre a realidade do mercado encarada pela HQM no momento do cancelamento dos títulos Valiant, para o site Terra Zero, que pode ser conferida aqui. Há, também, uma matéria minuciosa realizada pelo editor Abraham Reisman, da New York Magazine, sobre a história da editora Valiant e dos executivos responsáveis por esse novo tempo áureo que as suas publicações estão vivendo no momento, que pode ser conferida aqui. E, para encerrar, há confirmação da chegada dos títulos da Valiant aos cinemas a partir de 2016, o que poderia ser uma oportunidade para alavancar em muito as vendas das revistas desses personagens tanto nos Estados Unidos, como no Brasil, conforme pode ser observado aqui.

Novos horizontes podem se apresentar à editora do título "X-O Manowar"